9.10.10

Voyeur: tarde (reeditado)

Tarde


“É uma pena que a moça dos óculos de aros de tartaruga já não esteja mais entre nós para nos contar aquelas pitorescas estórias sobre paragens longínquasSua voz, tão suave, se entrelaçava à brisa vespertina, eriçava as cortinas, perdia-se nos cachos de Virginia e depois ia ecoar lá nos fundões do mundo, ou do outro lado da rua, tanto faz, tocando a nuca do menino que teimava no clarinete: do, re, mi... Não, é mi bemol!”, dizia o professor em pensamento, segurando alguns livros que haviam acabado de chegar da capital, ao mesmo tempo em que sorvia o restante de um café já frio, servido em uma xícara de estranha graciosidade, com bordas carcomidas e gravuras chinesas: nela era possível observar cules vestidos em azul em meio a infinitos arrozais que ondulavam ao impulso da aragem como um denso e irrequieto oceano verdolengo. Mais ao fundo, das entranhas das montanhas de cumes decepados pelos cúmulos nimbos tão baixos como se apresentavam naquela hora quiçá matinal, vinha um nobre manchu vestido em preto, pousando tal como espectro faustoso e temido, flutuando sobre as águas caudalosas; e, conforme os mares se abriam, entrevia-se um lacaio escanifrado e suado galgando com seus pés descalços a terra molhada e viçosa da estradinha que serpenteava aquela planície: carregava o nobre circunspeto em um jinriquixá. Havia uma pequena vida acontecendo ali, e ninguém se dava conta.

"Pedrinho, menino traquinas, sempre com aqueles olhos proeminentes de um azul cobalto atentava mais para as pálidas mãos  onde pousava aquele velho volume. Tão bruto na aparência. Era assim: continente e conteúdo. A boca da triste moça parecia ter parado no tempo. Restava-me a impressão de que, a qualquer hora do dia ou da noite, lá estaria ela em sua cadeira Windsor (que o pai trouxe da Inglaterra de navio!) pronta para contar a próxima aventura ou romance. Na maioria das vezes, ela esboçava palavras que não alcançavam meu rude conhecimento de criança, mas que, por algo que sabe se lá como os homens devem chamar, me causava fascínio. Pena que se fora tão cedo. Era tudo como um sutil adágio apenas perceptível aos anjos. Tudo tão deliciosamente naïf, como toda infância o é. Talvez seja por isso que ainda gosto tanto daqueles pré rafaelitas que hoje podem ser encontrados nos calendários da farmácia”, lembrava-se enquanto limpava os resquícios de açúcar de confeiteiro que ficara nos cantos dos lábios e embaixo do bigodinho.


E, como que derretidas pelo sol primaveril, as imagens da infância já naturalmente se esvaiam enquanto um gato dourado e peludo por ali passava, rolando envolto na poeira como fragmento desprendido do Astro-rei. Preguiçosamente esticou-se, arqueou a corcova, roçou-se nas azaléias e, com os olhos semicerrados, deitou-se na soleira da casa onde vivera Dna. Hulda, tendo como plano de fundo São José de azulejos pintado em azul com um pincel grotesco, mas que ainda sim preservava um certo olhar piedoso. O bichinho adormeceu sobre seu próprio pelo macio, parecia estar inebriado no intenso (e quase insuportável) olor exalado pelas goiabeiras.


O professor pagou e seguiu caminhando pela rua com seu andar canhestro, típico desses homens que se entregaram aos livros ao invés de se entregarem à vida. Tinha os pés abarrotados de passado, as mãos trêmulas de presente e os olhos cegos de futuro, foi quando ele viu, pela primeira vez, sentado nos degraus da entrada da casa abandonada, a estranha figura do homem desconhecido a olhar para o infinito tendo apenas um óculos escuro como fronteira de tudo mais que fosse mundo. “Quem seria esse homem?”. O professor, sempre interessado em um papo com os moradores do bairro, foi se aproximando do homem – dizem as más línguas que, inclusive, tencionava candidatar-se à vereança e, por esse mesmo motivo, sempre se apresentava tão simpático e falante, chegando a beirar, por vezes, o ridículo. Porém, quando Seu Heitor gritou: “Doutor, o senhor está esquecendo esse aqui”, o professor voltou-se bruscamente para o estabelecimento. “O que foi?”. “O livro, doutor. Tá esquecendo!”. Dirigiu-se até o bar maldizendo sabe-se lá o que ao mesmo tempo em que uma cambada de gralhas se apinhava na beira do regato em tremenda algazarra, e, ao observar as mãos ensebadas do pobre homem que marcavam a capa verde e lustrosa, não conseguiu esconder a cara de nojo. Ao pegar o grosso volume com as pontas dos dedos, inevitavelmente deixou-o cair no chão. E o livro ficou lá, estatelado, bem na página onde constava o seguinte verso:

“To see the world in grain of sand
and Heaven in a wild flower.
Just hold infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour.”*

O recibo de entrega foi flanando lentamente sobre o solo até que uma rajada de vento o soprou aos céus, passou pela careca de Heitor, titilou os dedos pequenos do Professor e foi lentamente rendendo-se ao solo, até beijá-lo com delicadeza, indicando orgulhosamente, com uma letra quase ilegível: “encomenda entregue em Vinte e Um de Setembro de Mil Novecentos e Sessenta e Oito”.

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Atibaia,
Primavera de 2007
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* Heaven in a wild flower, Willian Blake, musicado por Bill Douglas:

14 comentários:

Araúja Kodomo disse...

Post lindíssimo :) *

Lorena Vera Verján disse...

Hola Otto, un gusto estar y disfrutar de tu espacio...

Un abrazo

Anônimo disse...

Amo essa sua sutileza, essa delicadeza, essas metáforas , essa engenhosidade, você faz amor com as palavras e nos tira do chão, viajamos no seu texto.Beijos,Ana

Carolina disse...

É coisa de gente grande. As coisas existem a partir do momento em que são vistas à luz ou nomeadas à constatação. As suas coisas simplesmente existem, pelo sentido de algum órgão seu que as sorve.É coisa de gente grande. E é coisa muito boa.Abraços, meu caríssimo.

Maria Helena Sleutjes disse...

Você cria imagens encantadores que nos tiram mesmo da realidade.É muito criativo ao apresentar a narrativa e viaja com tranquilidade por vários domínios como quem tem muita mestria com as palavras.Então, quero agradecer, pela visita, pelo comentário e pelo belo texto que acabei de ler.Bjos

Eduardo Paixão disse...

É talvêz o texto mais perfeito que você escreveu. Em muitos momentos, perdi a noção do tempo. Fiquei imaginando aquela xícara de café. Raramente vi descrições tão instigantes.O texto todo é como um poema sinfônico para mim. Belo, harmonioso, e principalmente cruel. Cruel pelo fato de no fim, sabermos que isso é a vida. Mas preferimos fingir que é apenas uma obra de arte.Parabéns, meu amigo.Grande abraço.

Samantha disse...

Ufa!
Tua forma parece me deixar artodoada, enfeitiçada. Tem um encanto familiar por trás de tudo, como se a vida fosse cheia de pequenos mistérios (acho que, de fato, é).
"Ficava estranhamente feliz ao imaginar que, diferentemente de todos, não serviria de tralha histórica até que seu nome virasse fuligem ao dobrar dos séculos, que não daria lágrimas a ninguém, bastava as que derramava todas as manhãs... "
Esse trecho parece falar do que sinto lá no fundo de tudo, atrás de todas as máscaras e todas as mentiras que visto.
Adorei.
E fico, agora, pensando em como e porquê isso me atinge, me arrebata.
Você é fascinante.

ps: adoro esse poema do Blake.

Um beijo, my babe.

josé carolina disse...

Eu preciso terminar de pensar naquele pra pensar neste.

Lucia M. Ghaendt-Möezbert disse...

Gostei do título do seu blog e da miscelânia de influências que enxergo - embora você possua um tom muito particular, o que também me agrada. Seguindo (:

Anthus da Geb disse...

Otto,

Mesmo quando você não quer dizer nada com um texto você consegue se superar.
Acho que esse texto eu nunca comentei...o importante é que você pintou outra bela tela.
Você sabe o quanto gosto de dança (tá difícil esconder isso em mim! rsrsrsr), e a mesma sensação que sinto quando vejo Gene Kelly dançando eu sinto quando leio algo seu, eu me arrepio e fico muito emocionada...até quando você não quer dizer nada.
Você sabe ser divino.

Lucia M. Ghaendt-Möezbert disse...

Ah, posta alguma coisa nova (: seus textos definitivamente prendem.

josé carolina disse...

"e, conforme os mares se abriam, entrevia-se um lacaio escanifrado e suado galgando com seus pés descalços a terra molhada e viçosa da estradinha que serpenteava aquela planície: carregava o nobre circunspeto em um jinriquixá. Havia uma pequena vida acontecendo ali, e ninguém se dava conta."
Este trecho tomou conta de mim até o último ponto, fui seguida e perseguida por ele na leitura. Isto "Havia uma pequena vida acontecendo ali, e ninguém se dava conta.", principalmente, me deixou presa.

Só parece que ocorreu um probleminha na digitação (avise-me se o problema for na minha miopia), eu não encontrei a abertura de aspas no segundo parágrafo (o fechamento está na linha penúltima do mesmo). Me anuncie quando vir? Deu uma mexida no meu entendimento, quero reler.

No mais, me desculpe pela insistência e retomado abuso, sinto falta daquilo que pedi a você.

Um abraço, Otto!

Eu gostei muito deste, muito mesmo.

otto M disse...

Você tem razão, menina atenta! Eu esqueci de colocar as aspas iniciais e não fiz a formatação para a fala do narrador. Agora está corrigido. Eu raramente volto para ler o que escrevo, por isso esses erros de digitação passam batidos. Valeu pelo aviso.

Sueli Maia (Mai) disse...

Otto,
cheguei aqui pela Carolina, com um poema que dialoga com o teu texto.

Belo texto, repleto de imagens e sentires. Estou ainda sob o efeito da melodia e sinestesia que o texto aflorou.
A vida se engendra nas pequenas coisas.

Belíssimo!

foi um prazer tê-lo encontrado

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