4.8.10

Aquarela (reeditado)

Abre-se uma fresta na cortina: emoldurada pelo quadrilátero da janela florida, emerge uma pequena face assustada; a luminosidade é nebulosa, quase radioativa, fere as retinas e toma perpendicularmente de assalto o inanimado quarto. Na imagem horizontal, o céu plúmbeo se funde ao oceano. Um único organismo onde torrentes marítimas de ar transitam em suas vias aéreas. Os olhos semicerrados do personagem não se importam com o mar que marcha um marchar quase estático, denso e repetitivo, rumando obediente em direção à terra, e em seu caminho sendo penitenciado pelas gotas da tempestade diagonal e constante que lhe fere a superfície, até arrebentar-se nas negras rochas verticais, quando então restam gotículas a bailar em espirais até serem tragadas pela volúpia do vento. A face recostada sobre a fina película de vidro que estampa de seu lado externo as bolhas da chuva, sente agora o gelo arder as sardas do nariz, faz-se então notória a cálida e sôfrega respiração a formar figuras concêntricas de névoa oscilando no vidro frio. Como uma criança, aponta, sem poder tocar, embora almeje, para cada uma daquelas bolhas de chuva, para cada um daqueles micro-universos, e assim passa a divagar sobre a efemeridade do brilho que eles emanam. Aquele brilho cuidadosamente registrado em uma tela de textura granulada. Uma aquarela cujo alto preço não me impede de cometer o pecado de acariciar a rusticidade de sua superfície com a ponta dos dedos. Apraz-me o frêmito. É como, por um momento, possuir (implantado em sua própria mão suja) o dedo de Deus, que afunda nos pântanos e no estômago quente e pulsante das árvores - Sinto meus olhos esgazeados e perdidos naquela imagem tão particular e passo a balbuciar palavras inaudíveis: “Eu mesmo sou recluso de meu aposento que, ao mesmo tempo, é palco das minhas insones noites. Resta-me a alma”.

Vagarosamente, percorro as paredes cujos desenhos geométricos do papel se misturam em minha mente. A meu lado, um lindo vaso de cristal tcheco sobre uma toalha de crochê. Nele, uma dúzia de rosas vermelhas. As rosas estão vicejantes, belas em sua plenitude de rosas ser.

São três horas da tarde. O telefone toca: alguém pergunta se recebi as rosas. “Sim. Obrigado”. “Sim, são lindas”. “Não, não vou.” Deixo o telefone escorregar de minha mão.

No enleio do fumo, no caminhar trôpego, minha mente divaga sobre a noite anterior. Ah, Minha primeira exposição! Mil perfumes, abraços, flores, flashes, beijos estridentes, sorrisos efervescentes, olhos flamejantes, mãos geladas, sucesso... Sucesso! Borbulha a sopa da humanidade no caldeirão do mundo e eu me quedo vendo os espectros da fumaça morrerem diante da lâmpada. 

Seis horas da tarde. Minha mente viaja e, sem reconhecer fronteiras, agora estou num jardim de uma casa senhorial no sul da França, jogando xadrez com um garoto sardento que não pára de contar estórias maravilhosas e absurdas, como se elas fizessem parte de sua rotina. Dentre seus contos ligeiros, chamou-me atenção em especial um que ele contou com os olhos arregalados: falava-me de um certo ermitão que vivia num lugar ermo nas redondezas de Alhambra. Tamanha solidão o tornara uma espécie de híbrido que transitava entre o real e o irreal, que não conhecia o limite entre vida e arte. Certa noite estrelada, o homem recebeu uma visita inusitada: seu amor platônico, uma figura quase pueril se materializa diante de seus olhos e, em seguida, por crueldade do escritor de tal fábula, a linda ninfa torna-se um pássaro a ciscar em sua janela - ... Ah, aquele aroma inebriante dos manacás que nos cercam. Gente boa, gente amiga aquela. Um tímido raio de sol, em sua benevolência, atinge-me o peito, doura-me a alma até que passo a sentir o insinuante aroma de limão com canela no ar. Inspiro-o profundamente. O chá então é servido por lacaios de libré em um gazebo com cortinas terracota.  

Mas as horas escorregam assim como a água que escorre inexoravelmente numa clepsidra. E o ciclo vai se fechando, a morte vai se colidindo com a vida. Cada noite é um prólogo dela e a única coisa que, ao que me parece, faz de nós, os artistas, eternos é o registro de nossas misérias, de nossa reles humanidade, sempre pintada com tanto esmero. A paupérie como estandarte de nossa eternidade. 

Sete horas. Ajeito o nó da gravata e penso no que pintar agora, sinto-me vazio de emoções e passo a duvidar se as emoções que já pintei foram de fato reais. Teria eu sido um fingidor? E toda dor que senti, o que era? Me aflige a idéia de não me expôr mais, preciso que me vejam por dentro, que toquem minhas vísceras para que, assim, me amem. Há em mim uma angústia sem nome e com o garfo de prata disseco a carne sanguinolenta como um irriquieto e sádico cirurgião. A meu lado, um grupo de pessoas fala e gargalha em bom volume - Um homem de bigode corta uma pimenta com uma faca lustrosa e as sementes explodem do pequeno corpo como vermes- As testas suam, cozinheiros gritam, deixam cair caixas de tomate, o sommelier deita mais pinot noir na taça e, num deslize, derruba o vinho sobre a mesa, o maître enrubesce-se, os músicos atacam um bebop elétrico e ardido de merda, o wallet chacoalha as chaves, a criança corta o dedo, a velha francesa sorri com os dentes repletos de couve. As luzes falham, meus ouvidos zunem, fecho os olhos e tenho a sensação que vou desmaiar, quando vejo, do outro lado da rua de paralelepípedos, numa cafeteria, uma moça ruiva a virar lentamente as páginas de um livro antigo. Respiro fundo. Desato o nó da gravata e descubro ali a cena de meu próximo quadro. A angústia se vai e tudo volta a ter a mesma serenidade das dezoito e cinqüenta e nove. 
  
Meia noite. À luz da lâmpada, as rosas baças são circunscritas por um brilho que as ajudam a mostrar um viço que já não têm. 

Três horas. Madrugada. O cansaço me assola e o sono, sem ajuda química, não vem. Submeto-me, mais uma vez, a meu vício. Ingiro alguns comprimidos e desmaio. Sono sem sonhos. Sonhar pra quê?  

Três horas da tarde do dia seguinte. Acordo. A princípio não sei onde estou, mais um pouco, e o choque com o real: olho para o vaso das rosas e vejo os cabos ostentando as sépalas vazias. As pétalas, com tons amarronzados, jazem na toalha de crochê. 

O telefone não toca. 

Sinto a chuva caindo do lado de fora, ouço o bramir do mar; abro uma fresta na cortina, e com a face assustada, olho pelo quadrilátero da janela florida, recosto-me sobre a fina película de vidro e observo as efêmeras bolhas da chuva sem poder tocá-las. Embora sempre tenha almejado.


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Atibaia,
Verão de 2006
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Texto inspirado nas músicas: "Aquarell", de Rolf Lovland e em "The trees", de Max Richter.
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Para ouvir durante a leitura:

27 comentários:

Anônimo disse...

Ah, moço, vc escreve de um jeito que me estremece, meus olhos colam à tela e não querem ver o conto terminar...

Araúja Kodomo disse...

Sempre super bem escrito ;)
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Hannah Herman disse...

Li desde a primeira versão e sei o quanto este texto melhorou. É incrível que nada é tão bom que não possa ser melhorado. Um texto que revela o poder da criação e como ela se dá. Às vezes a criação é apenas a recriação daquilo que vivemos.

Beijos

Katrina disse...

Hey, conhece a mojobooks?
www.mojobooks.com.br

Dá uma passada lá, se você gostar da proposta do site, me dá um toque. Sou editora agora de lá ;)

Rackel disse...

Cada átimo captado pela inspiração concentrada do poeta a se transformar num conto que é um poema quase que trágico a decodificar a vida, a inércia e a angústia do personagem. Gostei

Thiago Valadares disse...

Só o que vêm do coração atinge o mesmo, seu drama fez com que líquidos rubros rompessem a cordialidade com seus dutos de condução e assim em grande estilo rompessem a superfície que separa tais dutos de um musculo extasiado e pulsante que nesse momento dá tudo de sí para dar um novo sentido a palavra Transcedental.

Abreu disse...

Texto conciso, trabalhado, erudito, qualificado.

Arnold disse...

Muito bom seu texto, repleto de imaginação."Sono sem sonhos...Sonhar pra que? Essa é uma pergunta que salta do texto. Será realmente vale apenas sonhar?Parabéns.

Anônimo disse...

sinto-me vazio de emoções e passo a duvidar se as emoções que já pintei foram de fato reais. Me aflige a idéia de não me expôr mais, preciso que me vejam por dentro, que toquem minhas vísceras para que, assim, me amem. Gostei muito do seu texto. Sua narrativa tem descrições tão detalhadas, são belíssimas. Adorei o trecho acima. Parabéns. Kátia

Luna Steinherz disse...

Muito bonito... A realidade pintada em uma aquarela de sonhos... Um texto, por que não dizer, cinematográfico.

Ana Másala disse...

Sei que vou reler este maravilhoso texto muitas vezes.É meu o rosto na vidraça! Beijos,Ana

Anônimo disse...

Olha só o que acontece no meu sentir, no meu pensar: para mim texto como esse é de gente grande,digo, de um escritor ímpar, tanto que às vezes, fico constrangida com medo de falar alguma bobagem.Obrigada, pelo incentivo.Beijos,Ana

Ana Másala disse...

Ah, quase posso tocá-lo , assim como você faz com a tela.Não li esta maravilha antes? Sinto o autor intensamente colado ao texto.Beijos,Ana

Jane Krist disse...

Poxa. Bravo!!! Um mergulho pelas camadas do vento, que traz sempre um punhado de ansiedade e gritos que silêncio a nódoa da dor. Aqui me findo, sobre o som dessa retrato: “ Mas as horas escorrem assim como a água que escorre inexoravelmente numa clepsidra. E o ciclo vai se fechando, a morte vai se colidindo com a vida.” Otto M. Um abraço.

Raffert disse...

Esta é uma das facetas de Otto, seus escritos me deixam com a sensação de que perdi algo. O primeiro um terço do texto se gasta com a descrição entre o aposento e ligeiramente sobre a psique do personagem. Por um momento pensamos que seja feminina. A seguir, o que poderia ser pedante, se torna como uma rave numa pizzaria. Fellini? É nisso que minha mente vagará... como a nave... até descobrir o que esse lizard está me escondendo. Profuso abraço

Marlene disse...

Otto, bom dia! Eu estava lendo o seu texto e na metade decidi parar para conhecer o teu perfil. Fiquei impressionada por você ser tão jovem e escrever brilhantemente. Como estou com pouco tempo para ficar na net hoje, estarei retornando amanhã para ler todo o seu texto todo e outros

Diana Gonçalves disse...

São muitos os caminhos que norteiam a busca do artista, até o mágico instante em que parece tocar o sempre almejado, onde a reinvenção de si mesmo é o mote que se apresenta, no eterno apelo da arte e da vida. Abraço, amigo, escritor, poeta, pensador, instigador de emoções, que sacode-nos do nosso conforto e nos leva a refletir sobre o ato de escrever. Abraços.

otto M disse...

Anthus da Geb, em 2009:

Aquele um minuto (o que marca as setes horas)traduziu com fidelidade a angústia de um artista...é assim mesmo. Muitas vezes o artista perece fazer um passeio em uma montanha russa emocional...e isso passeios é super rápido, coisa de um minuto mesmo!Adorei. Você transmitiu exatamente como é essa aflição.

Eu gostei. Está bom, mas você poderia explorá-lo mais, não acha?Penso que ele poderia se tornar algo maior. Eu sinto que é um conto que pode muito bem ter muito mais coisas, poderia até ser tornar um romance...acho que ele grita por profundidade.Além disso, ele é uma delícia para ser transformado em roteiro. Daria uma bela fotografia e seria uma direção de arte divertidíssima.Pessoalmente eu não consegui casar a composição musical que te inspirou com o texto. Mas ela te inspirou a escrevê-lo, não sei se ela deveria obrigatóriamente se casar com o texto. Eu sou leiga em música, tô dando palpite sobre esse aspecto apenas seguindo minha intuição.Gostei do material porque ele tem potencial, basta você não ter medo de ousar e explorar todas a possibilidades que ele te abre.De tudo que já pude ler seu esse me agradou mais que qualquer outro. Seria ótimo se você tentasse explorá-lo mais. Sinto que você tem o ínício de algo muito bom.E pense na possibilidade de um roteiro...ficaria muito bom.

Larissa Marques - LM@rq disse...

quanto e tanto...
sou avessa à palavra mesmo lidando com ela, amo ler-te em prosa, meu querido amigo!
vejo-te em cada linha, em certa feita me salva de mim!
saudade!

Katrina disse...

Ah, deu um ar mesmo de algo ambientado em Atibaia. Bateu aquela nostalgia boa e gostosa de sempre ;)

Moço, me adciona no orkut (tem link no meu blog) prá te fazer uma proposta irrecusável e indecente, MUAH

josé carolina disse...

É claro que eu também vou querer indicar "Recuerdos de La Alhambra", de maravilhoso Tárrega, para o durante leitura.
Otto, eu gosto muito das suas imagens, parece carregar palavras inscritas nos olhos. A sua linguagem é sempre uma arquitetura fortíssima e, acima de tudo, bela.
Mas confesso que, por tanto admirar suas edificações, trago a elas uma curiosidade inerente: ver destas mesmas estruturas em tinturas diferentes, sobre planícies em extrema dissonância das suas de costume.
É só uma curiosidade conhecer outros motivos de sua palavra. Ainda os inexistentes, todos.

E, agora, eu admito este abuso tamanho de minha parte.

Um forte abraço, Otto querido, e me desculpe passar tanto tempo sem vir.

Carolina.

otto M disse...

Carolina Caetano: dura cousa me pediste! Mas prometo que vou fazer sua vontade, nem que precise expor o avesso de meu verbo. Pode demorar.

Sua visita é sempre um alento, moça, e eu que devo desculpas por estar tão distante dos mares virtuais, em especial seu blog.

Um grande abraço desde as "highlands" de Atibaia, São Paulo (vc dizia que eu era muito british, rsrs).

Anônimo disse...

Oi Otávio,

Lembro-me da ter lido a primeira versão e ter feito um comentário. Não me lembro das palavras mas, intuitiva que sou, bem mais do que racional, lembro-me claramente que doía le-lo, quase incomodava, pela extrema vulnerabilidade que claro, refletia em mim. A impressão, hoje, foi a mesma. Se a expressão: " a flor da pele" tivesse uma imagem, ela com certeza, vestiria sob medida, cada contorno, cada sombra, cada pedacinho de luz desse conto. Não sei como adjetiva-lo...tão soulful que é. Deixo que a música, que você tão bem escolheu, o faça.

bjs,
Valéria

josé carolina disse...

Otto;
Estou feliz de um tudo agora.

Lorena Vera Verján disse...

Un gusto leerte...

Saludos desde Mi Región

Adriana Espineli Simon da Fonseca - Psicanalista disse...

Oi, Otto! Vc sumiu! Nem conversamos mais por email! Tá de mal de mim? Rsrs. Cheguei até a ficar preocupada, mas vejo que vc está bem e continua talentoso como sempre. Lindo texto. As angústias do narrador acordam as angústias em nós, principalmente, dos que têm a solidão como fiel companheira. Bjos.

Ana Flor do Lácio disse...

Boa noite, Otto! Não sabia de sua existência no Recanto, até ler seu comentário (reli) na página do Jorge Cortás. Belo, profundo, seu conto. Desde o início me deixei levar pela leveza e colorido dessa aquarela, devagar, linha após linha, saboreando cada palavra, com receio de chegar ao fim e acabar... pois tudo é finito, efêmero... a vida, os dias, as palavras... apenas a obra dos grandes artistas permanecerá para a posteridade. Ontem mesmo estive contemplando algumas obras de Aleijadinho e fiz essa mesma reflexão sobre a efemeridade e a eternidade das coisas... Foi um prazer ter conhecido seus textos. Parabéns pela inspiração e criatividade, coisa rara e tão agradável de se encontrar neste nosso (cada vez menos encantado) Recanto. Abraços.

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