15.6.10

O Magricelo da Rua Arbat (dos Diários de Moscou)

Não raro, nas esquinas frias e bares fedorentos de Moscou, podemos encontrar músicos talentosos implorando por um único rublo para encher a barriga ou que seja por um mísero olhar para encher o espírito. Nesses anos todos trabalhando com arte, aprendi que a fome do ego é a única que não se pode deixar de ser saciada. E ela nunca é saciada. Vejam só: o espírito do desprovido de talento morre de inanição, fica atrofiado em forma de inveja e auto-comiseração - ou de crítico especializado - antes mesmo que o corpo que o carrega desça para as valas comuns. Já o espírito do talentoso... Também morre de fome porque toda essa contemplação, estes aplausos que estouram nas abóbodas dos teatros, todo esse amor idiota que se tem por alguém que irrompe o som monótono da realidade com fogos de artifício projetados por um soneto, por uma clarineta ou com o que quer que seja, acaba, ou é ainda muito pouco para a grandeza de tal gênio, de tal escolhido de Deus. Talvez só a morte sacie a todos, venturosos ou não.

Logo que desembarquei por aqui, acostumei-me a tomar quase todas as tardes umas doses de vodca num pequeno bar na rua Arbat, lugar completamente aquecido e, meus amigos, depois de enfrentar um inverno de quase quarenta graus negativos, eu entrava lá tendo a sensação acolhedora de estar voltando para o ventre de minha mãe. Sentava-me num alto e fofo sofá azul de veludo, onde, depois de alguns minutos, ficava completamente imerso pelas almofadas de modo que meus pés não mais tocavam o chão. Lá podia ler o Mail, beber e examinar as mulheres moscovitas.

Certa vez, durante o verão, estava acertando algumas dívidas com Svetlana, uma prostituta que quebrava nozes com a vagina, quando um rapaz magricelo e desajeitado entrou soando os guizos da porta e foi de mesa em mesa oferecendo canções com seu trompete. Na primeira mesa, tocou, ou tentou tocar, algo que parecia um passodoble. Não ganhou nenhum óbulo sequer. Na segunda mesa... Não tocou nada, o homem que estava nela só levantou a mão em sinal para que ele não prosseguisse. Quase desiludido, o rapaz chegou até mim perguntando se podia tocar algo.

"Trompete combina com vodca?" - Perguntei, ao que ele respondeu com um dar de ombros.
"O senhor quer que eu toque alguma música especial para sua esposa?" - Disse com um tom desanimado.
"Vôo do besouro." - Respondi apontando o indicador para ele.
O rapaz engoliu seco.
"Se conseguir, te dou quatrocentos e vinte rublos."

Ele fechou os olhos, concentrou-se e começou a tocar com toda aquela vertiginosidade que a música tem. No começo, tudo correu perfeitamente, não dava nem para ver os dedos dele, dada a velocidade em que tocava. Seguiram-se uma desafinada ou outra, sua testa pingava. Comeu uma nota. Mas, mesmo assim, o rapaz queria parecer compenetrado, queria dar aquele ar de virtuose, persistia em tocar; visivelmente estava se auto-desafiando e era divertido ver o quanto ele sofria, feito um rato de laboratório que, uma vez contaminado por uma droga letal, tenta vencer sua condição de roedor, de ser vivo, para provar que é inatingível à empáfia, à audácia, do cientista sádico ou às leis da natureza. Repetiu uma frase, esqueceu da seguinte e emendou com a cadência final. Seus dedos já quase não mais respondiam a seus impulsos, as notas se ligavam e a melodia começava a perder sua forma original; em seguida, ele inventou uns trinados, umas apogiaturas, improvisou notas, quis transformar o besouro russo do Korsakov no mosquito do Satcho, from Mississipi. Sem saída, em pleno desespero, o garoto começou a improvisar uns passos. Quis coreografar e Svetlana riu escandalosamente. Depois, começou a jogar a cabeça para frente e, ainda de olhos fechados, subiu no balcão. A essas alturas, eu já nem sabia mais o que ele estava tocando e comecei a ficar aflito por ele, segurando com força o braço da beldade russa quando, num estrondo vigoroso, um relâmpago clareou as janelas e estremeceu tudo. Mikhail, o barman, disse: "vai chover". Já estava chovendo e a chuva se intensificava a cada segundo. O magricelo então já estava cuspindo no instrumento, estava enfiando a língua no bocal e gritando através dele. Pulava sob a plataforma de verniz quando, finalmente, alcançou uma nota tão aguda, mas tão aguda, que pensei que todo ele fosse entrar pelo bocal e sair intacto pela campana do trompete. E essa foi a última nota de sua... Rapsódia para um louco, e ela durou uns trinta segundos ou mais, dando a impressão que seus pulmões se estendiam até os pés. A música acabou. O magricelo silenciou. E, nesse momento, todos puderem perceber o estrondoso barulho da chuva contra as vidraças. Era como se a chuva fosse o Bolshoi inteiro o aplaudindo de pé. Ele, ainda de olhos fechados, curvou-se em agradecimento, voltando o trompete para o coração, com um sorriso amplo nos lábios. Logo tornou a abrir as pálpebras, suspirou e sua face tomou os traços aborrecidos de antes. Sem graça, caminhei até ao balcão e depositei a seus pés os quatrocentos e vinte rublos, aos quais ele recusou, afirmando que ter tido a sensação, por um instante, de que o bar todo o aplaudia o alegrara suficientemente.




----ooo----
Atibaia,
Outono de 2010
-------------


___________________________________
Alison Balsom é uma das mais belas e famosas trompetistas do momento.
Para ouvir durante a leitura:

22 comentários:

Rejane disse...

Faz parte de seu conto. E seu conto é um verdadeiro roteiro para Cinema. As suas descrições em películas me fariam tremer.

Larissa Marques - LM@rq disse...

Não me canso de sua fala, e esse romance ainda será editado pela Utopia. Ouso dizer, em laços miúdos que criamos, que a grata satisfação de tê-lo como amigo só é superada pelo prazer inenarrável de ler-te!
Ainda aprendo a narrar como você!

Anthus da Geb disse...

Muitos de seus escritos você deveria transformar em roteiro p/ cinema.
Esse é um deles. Esse conto ficou excelente, todos os capítulos.
Por que você não tenta fazer isso?

nydia bonetti disse...

Que beleza teu blog, Otto! Li o primeiro conto - fantástico. E ao som deste trompete... nossa, que coisa mais bonita. Estarei por aqui. Abraços.

Ramiro R. Batista disse...

Estupidamente... Virtuosismo de uma obviedade que constrange, mais que espanta. Continua com o mesmo talento, nobre Otto. Esta sua mescla de boa literatura com música de gosto requintado nos enaltece, nos faz crescer (não sem intimidação, claro). Mas uma boa auto-reflexão nos faz melhorar um pouco. Não conhecia Alison. Sou clarinetista amador, e adoro trumpete e flugelhorn. Saudades de Miles e de Montarroyos. Que bom que a sua literatura nos traz cultura contemporânea de peso. Vou em busca da partitura da peça e de mais música de Alison. Continue escrevendo. Quando publicar seu livro, por favor me avise. Abraço.

Araúja Kodomo disse...

Obrigada!

Bonito post gostei! Vou seguir o teu blog :)

josé carolina disse...

Otto, querido! Obrigada pelo texto. Dos seus que já li, foi o que mais gostei.
Publiquei no blog hoje de manhã, imagino que pela noite ou a partir de amanhã, já tenhamos um bom número de comentários pra você aceitar, rebater, engolir, enfim!
Novamente, obrigada.
Abraço!
Carolina.

Araúja Kodomo disse...

Obrigada ^^
Tenho nova foto, caso quiseres, podes lá passar e comentar ;)

Luciana disse...

Olá!
quando puder, passa lá e pega o seu regalo!
Um abraço,
Luciana

Diana Aventino disse...

Otto, Otto! Tua escrita, além de atrativa, impressiona. O que você faz com teus textos deve ser para nos silenciar... Mas identifiquei-me com este ((não, não saberia escrevê-lo, porém poderia ser uma das personagens)) Sexo implicito, música e poe.sia. Tudo mui bem retratado com uma delicadeza e realidade realmente IMPRESSIONANTES! bEiJoS meus

Anônimo disse...

Que prazer me deu a leitura deste texto. Muito bom!

Abraços.

Andrea de Godoy Neto disse...

Uau, Otto! Que beleza de texto!
quando acaba a gente até se espanta, porque pensava estar lendo um livro.

grande abraço

Katrina disse...

Imaginei tudo isso e vivenciei, como poucas coisas com vida que me fazem pulsar.

Cilas Medi disse...

Um belo relato. Um conto diferente. Parabéns, poeta!

Eduardo Paixão disse...

Extremamente correta a introdução sobre a fome do ego. Até porque quem não tem fome de reconhecimento, guarda para si apenas as suas obras. A personagem da prostituta me parece uma velha conhecida. Gosto dessas criaturas absurdas e bizarras e por isso mesmo, cheias de humanidade.Mas sem dúvida, o trumpetista poderia ser mesmo o meu alter-ego. Por vários motivos. Mas creio que o principal é a falta de medo em se arriscar em missões suicidas. (Voo do besouro é para matar). A sua escrita, como um todo, carrega aquele agradável ar blasê, de quem presencia e até participa da cena, mas com uma falta de condescendência e até uma leve crueldade. Não é qualquer um que cria coisas assim. Fico sempre ansioso pelos seus textos, pois têm um grande poder de inspiração para mim. Sempre recorro a eles em alguns momentos.Veja se não desaparece de novo, ok....Abração, meu amigão.

Luna disse...

Aplausos para você Otto! Muito bom texto, excelente reflexão... E, eu sumi mesmo, hoje se completaram exatamente dois meses que não publicava... Ainda devo mais algumas visitas ao seu blog, entrei lá poucas vezes...Mais uma vez, parabéns pelo fantástico conto!

Adriana Espineli Simon da Fonseca - Psicanalista disse...

Otto, Otto, Otto... Só vc mesmo para criar uma personagem como a Svetlana e transformar o pobre rapaz magricelo em rato de laboratório. Sua inteligência vivaz e sua crueldade irônica temperam o conto. Sou sua fã. Bjo carinhoso.

Verônica Partinsky disse...

Sabe o que mais me impressiona nos seus textos? A vivacidade cinematográfica que reina nas entrelinhas. Parabéns meu caro.

Ana Másala disse...

Cinematográfico, disse alguém,concordo plenamente.Uma cena muito forte com uma boa dose de crueldade.Uma vez mais você toca minhas emoções de tal forma que viro personagem, entro em cena.Aplausos, meu caro!

Paulo Izael disse...

A agonia do aspirante à músico é algo mágico! "Se conseguir, te dou quatrocentos e vinte rublos"!, a beleza do gesto e o sarcasmo da palavra. Bela construção do conto que daria uma novela, ou quem sabe, um romance! Excelente!!!

Ana Maria Costa disse...

Otávio, é sempre um prazer ler-te. O texto é ótimo! Parabéns! Abraço.

Bernard Gontier disse...

Meu parco sistema de crenças me leva a tecer mil suposições sobre o fato dele não ter aceito a grana. Nenhuma delas é preto no branco. Tal e qual o seu conto, a chuva aplaude em idéias. Abraços!

Arquivo