19.2.12

Dominical

E então o quarto estava todo como que cheio dum incenso que denunciava tudo que ali havia acontecido, ambiente propício para fazer um pernilongo lançar-se insistentemente contra o ventilador barulhento que rodopiava no teto, mas que, apesar de tão ruidoso, não fazia mover o monte de lençóis ao lado dela: a montanha rochosa, a geografia do desastre que se erguia, ao mesmo tempo em que lhe vinha à boca o retrogosto da noite: ferro, como se tivesse mastigado uma chave de roda. Havia a janela e havia também sobre o criado a taça de vinho vazia que em sua face interna estampava uma catedral etílica, secada pelo tempo, como se fora condensada pelo vibrar tortuoso das cordas do violão do velho, dono do motel, e sua mourisca “Recuerdos de La Alhambra”. “Pronto: uma catedral de Miró seria esta, com suas agulhas espetando o céu por onde sobem e descem anjos, levando preces e trazendo mensagens divinas”, pensou. E as gentes saiam e entravam nela num domingo de missa e o padre as bendizia com largo sorriso, iluminado pelo sol roxo próprio das taças de vinho em manhãs de domingo. E todos estavam cobertos por aquele manto de luz, quando alguém se virou e disse: “é o sangue de Cristo que os acompanha”. – Mas ninguém ouviu, pois, como bem profetizou a velha que mora no beco sem saída: “nadie escucha a nadie hoy en dia, hija mia.” Paf - Lá se foi o pernilongo que zuniu a noite toda e o credor saiu sorrindo pela marquise crendo que aquele que jamais o pagaria seria exterminado pela justiça Divina, pois foi sobre isso que o Padre pregara. E as pombas voavam e cagavam alegremente no céu como é normal se ver em taças gastas e riscadas de motéis de beira de estrada, cujos donos são espanhóis que se casam com mulheres chamadas Luzia pelo simples prazer de falar o “sia” com a língua entre os dentes. Já o caloteiro, esquerdo que é, saiu também sorrindo, só que pelas laterais, pois o sermão do Padre lhe disse que, se ele tivesse fé, sua dívida seria paga por anjos, seres tais que, agora, sem saber ao certo o que faziam naquele local, se arrastavam amalgamados nas asas furta-cor do pernilongo morto que atravessavam a rua e iam parar do outro lado da taça. A mulher, por sua vez, percebia no reflexo do vidro da copa a única coisa com vida naquela sua face desmaiada: o corte nos lábios, pois “o merda que chamo de ‘meu namorado’ gosta de morder” e suas palavras se misturaram aos sinos que badalavam as onze e ao violão do velho que desafinava gradativamente, como se fosse possível ver as cordas se afrouxarem, ao ritmo em que o tempo e o espaço dilatavam-se, retendo em suas reentrâncias as asas do ventilador e fazendo a catedral se desfazer, como, aliás, é bem comum se ver em taças de vinho ao serem lavadas em pias brancas de banheiros de motel.

“Quer, amor?” – Disse ela, sorridente, oferecendo a taça. 
“O ventilador quebrou.” – Balbuciou o homem. 
“É o que se tem pra hoje.” – completou, com a boca cheia d’água. 



--------
Inspirado no universo e nas expressões de meu irmão, Eduardo Paixão.

Para ouvir durante a leitura:

22 comentários:

Anônimo disse...

Gostei demais Otávio. Não vou comentar. Quero voltar e reler. Estou ébria como esse pernilongo. Vou sair da taça,mas volto.

beijo,
Valéria

Anônimo disse...

Pude construir O NUNCA na camada fim da eternidade, do instante ligeiro da ilusão. Saudações de sua leitora. Jane Krist

Vera L disse...

Cheguei aqui...Li e reli.Na primeira lida: corri em cada cenário.Na segunda lida: contextualizei e dei formas...[sem tentar alterar nada]Um ventilador, q apesar de barulhento:nada altera.Havia a janela[ uma saída talvez?].Mas as vezes entendemos q existe saída, mas e aí? Tem dias q não quero nada.[mas gosto de saber q a janela continua ali]...Uma taça q modifica a cada angulo...O pernilongo? Tradução só tua.rsJuro que pronunciei: "sia" umas quatro vezes.rss [bobeira minha].

Bruna Nogueira disse...

Li umas três vezes até, enfim, visualizar algumas cenas... Certos elementos trago um pouco para mim: geografia, vinho, os lábios mordidos... Uma narrativa que foge das vulgares linearidades do "contar uma história". Parabéns pelo conto Otto! Espero ter outras grandes impressões aqui no teu recanto! Abraços!

Tiago do Valle disse...

Porra, que doidera... Minha cabeça já estava girando e eu quase vi pernilongos em todos os lados. É um elogio, claro. Daí a surpresa: se inspirou no Eduardo

Eduardo Paixão disse...

Acabei de reler esse texto,e é interessante pensar em quantas nuances são percebidas (ou não), quando a obra deixa de ser sua e passa a ser remodelada pelas várias leituras. Abraço irmão.

Adriana Espinelli disse...

Oi, querido Otto! Eita, que dom para escrever, hein? Vc é excelente com as palavras. Parabéns! Qto ao seu conto, não consigo deixar de ver a beleza que há nos porões da alma humana! Sou um caso perdido???!!! Rsrs. Bjok

Antonio Maria disse...

Não conheço as expressões do Eduardo, mas sei que o universo é fértil em escrever cenas assim, frutos da nossa amarga estupidez cotidiana.

Jane Krist disse...

" Vibrar tortuoso das cordas do violão ... e as cenas da queda na altura do som - quais notas tocavam? - BRAVO OTTO ... Sabe que quando leio seus textos me alimento por séculos e horas. Um abraço.

Dalva Molina disse...

Otto, é tão cedo ainda para que eu erga uma taça ao seu conto. Sei que o farei à noite, quando o silêncio começará a dar licença às catedrais pontiagudas de tantas lembranças em taças esquecidas. Tenha um bom dia!

Jorge Cortás disse...

Não resisti, Otto. Hoje é domingo. Abri uma garrafa de vinho tinto. Abraço.

Almma disse...

"E vêm à toda as fraquezas humanas benzidas com o bom e velho vinho. Assim seja diria sem mover os músculos da face, o Padre".De um mergulho no ser humano de fazer revirar as entranhas, esse teu conto. Parabéns.

Veronica Partinski disse...

Um conto surpreendente... e até sinto o gosto das palavras me conduzindo aos labirintos secretos que me levam até uma estrada de videiras maduras... Sinto o gosto do vinho em minha boca ao ler seu conto, palavra por palavra, até o findar dos segredos.

Bernard Gontier disse...

Conto afiado, Otto, leitura de primeira. Abs!

Eduardo Paixão disse...

Poder servir de inspiração para um texto tão ironicamente perfeito e que diz tanto do nosso universo, é uma alegria absurda. Ainda mais tendo ficado você tanto tempo sem publicar. Mas mesmo utilizando nossos "códigos" e bobagens que nos fazem rir como dois cretinos, eu percebo claramente seu estilo. Um incrível senso de equilíbrio, que impede a sensação de que algo está sobrando ou fora do lugar. E como já lhe disse, mesmo com o grotesco e risível discurso, a nota de fundo é o tédio, o niilismo e a descrença em tantas coisas. Gosto especialmente do "retrogosto da noite"...uma expressão absurdamente maravilhosa e carregada de significados. Amo encontrar aqui minhas imagens queridas da minha série de poemas ibéricos...enfim...me emociona esse texto para além de sua escrita. O melhor de tudo, entretanto, é perceber o humor entrar de uma maneira tão decisiva em um texto seu. Pra mim, significa muito tudo isso. Você só tem me dado orgulho. E com esse texto, não é diferente. Sinto a maturidade de um escritor de posse de seus elementos de expressão. Um virtuose. Obrigado, meu irmão. Um abração.

Tania Meneses disse...

Otto, estive aqui, lendo sua produção textual e me questionando sobre tantas realidades no mundo da literatura. Fiquei, por exemplo, pensando no lugar de destaque que sua prosa merece. Seu estilo chama a atenção pelo giro que imprime ao ato de escrever. Há tantas repetições e até imitações por aí e vc consegue algo invejável:o novo esperado e necessário. Com isto não quero criticar o anterior da literatura, mas o lugar comum no qual nós, que gostamos de escrever corremos. Vc está longe, bem longe de ser mais um. É Otto M e eu me sinto orgulhosa se haver sido lida por vc.

Doutor Lao disse...

Cara, baum demais da conta encontrar contista de primeira aqui no Recanto. o trecho "e as pombas...com a língua entre os dentes" é fabuloso, hilário. Volto depois para apreciARTE mais.

Diana Gonçalves disse...

Posso ser redundante, mas jamais hiperbólica ao dizer do prazer da leitura dos seus textos. É digno de ser publicado, quisera tê-lo na minha estante, para ser revisitado tantas vezes eu quisesse mergulhar no inusitado, original, criativo e singular. Abçs.

Reuben disse...

Otto,

Sem sombra de dúvida, acho que li todos os teus textos, assim como seus respectivos comentários. Tudo foi dito, porém, o que eu sinto ao ler os mesmos transcende à todas as palavras elogiosas que aqui li. Quem me dera inventar alguma palavra de efeito para comentar os teus textos... Não tenho esse dom. Como comentar um texto cujo diálogo é empolgante, é denso e não existe? Como comentar um texto onde a alma se expõe em emoções contraditórias? Como comentar um texto onde a dor se funde às figuras geométricas do próprio cenário? Como comentar esse texto? É assim que eu me sinto: um continente vazio de mim mesmo diante de tão ricos conteúdos. Mais nada. Não sei mais oque dizer.

Panda Lemon disse...

Que belezinha de blog, Otto. Me deixou com vontade de ler mais. Mas o volume de leitura pedante que tenho para o mestrado me impede de continuar me deliciando com suas sinfonias poéticas.

Um grande abraço

Anônimo disse...

Descobri a minha dificuldade em comentar esse texto. Uma imagem está tão amalgamada a outra que elas se fundem em "estórias de mil e uma noites" uma imagem dentro da outra e nelas uma sensação e beleza de caleidoscópio numa mutação e ritmo que cada leitor escolhe onde se demorar. O conto propicia essa gostosa liberdade. Vi os dois personagens do motel irremediavelmente atados ao sagrado, mesmo com o retrogosto da noite, como disse o Eduardo e sagradamente todos estamos confinados a uma dirty e ordinária dose de prazer afinal, é o que tem pra hoje. O pernilongo me pareceu um Avatar, saiu incólume dessa louca espiral humana e o copo, uma nave de transporte ficcional deliciosa. A forma é tão bem construída e bela que o conteúdo elegantemente acolhido agradece.
Gostei muito.
um beijo da Valéria

Helena disse...

Eu posso quase que insanamente afirmar que sinto o cheiro avinagrado do vinho seco na taça, que ouço o zumbido do pernilongo se confundindo com o violão cansado do espanhol, que sinto a estranheza dos anjos, que vejo a catedral, e padeço com a ardencia nos labios. Agora me diga, o que fazia voce sentaod num dos bancos da catedral? parabens lindissimo como sempre ... por mais que eu me prepare pra te ler, voce acaba me nocauteando com a surpresa e com a fusao dos sentidos que seus escritos me trazem
parabens parabens sempre!!!
Helena

Arquivo